Num dos eventos da Festa Literária Internacional de Paraty, cuja décima
edição se encerrou no domingo passado, vários autores disseram na Rádio Batuta,
do Instituto Moreira Salles, quais eram seus personagens literários
inesquecíveis. Eu e o Zuenir Ventura fomos os últimos a depor. O personagem
escolhido pelo Zuenir foi a baleia "Moby Dick", o meu foi outro monstro: Humbert
Humbert, o narrador do livro Lolita de Vladimir Nabokov.
Lolita é, para
dizer pouco, um livro ambíguo, e a ambiguidade começa no nome duplo do seu
narrador. O livro ficou famoso pela razão errada, o fato de ser a história da
sedução de uma garota de 12 anos por um homem de mais de 40, mas seus méritos
literários ultrapassam o escândalo. É um livro erótico, lido e interpretado como
um livro erótico - tanto que durante muito tempo só foi acessível em certos
países em edições pirateadas de uma editora francesa especializada em literatura
erótica - mas que contém pouco sexo explícito. Seu narrador é ao mesmo tempo uma
figura monstruosa e fascinante, um homem obcecado que submete uma menina à sua
obsessão e um dos personagens mais divertidos da literatura
moderna.
Humbert Humbert é quase uma autoparódia do intelectual europeu
empanturrado de cultura obsoleta, sendo simultaneamente repelido pela
vulgaridade da América e perdidamente apaixonado por ela, na figura metafórica
de Lolita. Até hoje os críticos discutem quem afinal corrompe quem, no livro.
Lolita e a cultura superficial mas irresistível da jovem América corrompem o
europeu ou a alta cultura europeia, mesmo priápica e decadente, corrompe a
inocente América? Dada a ambiguidade do livro, talvez aconteçam as duas
coisas.
Lolita está para a obra de Nabokov um pouco como o Cântico dos
Cânticos está para a Bíblia.("Lolita is to Nabokov's work a bit like
the Song of Songs, to the Bible") Os dois textos exigem
alguma ginástica argumentativa dos seus explicadores. Já ouvi o grande poema
lúbrico de Salomão ser descrito como uma declaração cifrada de amor a Deus e até
fundamentalistas, para quem tudo na Bíblia é verdade literal, fazerem uma
exceção e admitirem metáfora, no caso. Lolita também seria uma anomalia na obra
de Nabokov, que pouco usou o sexo nos seus outros livros. Há, mesmo, mais sexo
no resto da Bíblia do que nos outros livros do Nabokov. Os explicadores de
Nabokov, com a mesma intensidade dos fundamentalistas, combatem a ideia de que
Lolita seja pornográfico.("I've already heard about how King
Salomon's great lubric poem is a cyphered declaration of love to God.
Even fundamentalists who read the Bible as offering literal truth, made an
exception to admit metaphors, in this case. Lolita would also be an
anomaly in Nabokov's oeuvre, since he didn't often write about sex in his
other books...")
As andanças de Humbert Humbert e Lolita pelas
estradas e motéis da América são vistas por alguns críticos como uma viagem do
próprio Nabokov pela língua inglesa, ou - melhor - a língua americana. Lolita
foi o seu primeiro romance escrito em inglês e ele aproveitou para inventar
neologismos e brinca, com óbvio prazer, com termos e peculiaridades da sua
língua adotada. Nabokov nunca diria, como Flaubert disse de Madame Bovary,
"Humbert Humbert sou eu". Mas não há dúvida que ele também se divertiu com o
personagem - esquecido, é claro, o destino da pobre Lolita nas mãos do monstro.
O autor teve mais sorte do que Humbert Humbert, que escreve sua história na
prisão, esperando a morte. Foram os direitos autorais do livro e a notoriedade
que ele conquistou com a obra que permitiram a Nabokov voltar a morar na Europa
e viver só da literatura. Metaforicamente, Lolita lhe devolveu a juventude.(...
"Metaphorically, Lolita gave back Nabokov's
youth.")