Por Almir de Freitas
O ESCRITOR E SUAS FERRAMENTASExilado com a família, filho de um pintor russo de "óleos
inconsoláveis", Adam Lind era um fotógrafo homossexual de sucesso em Nova York,
casado com uma bailarina que colecionava amantes polacos em sindicatos de
transportes. Com "pendor para a trucagem", Lind registrou o próprio suicídio a
bala, em fotos tiradas de diferentes ângulos num hotel, depois que o homem por
quem se apaixonara havia estrangulado outro. "Essas fotografias automáticas de
seus últimos momentos e das patas de leão de uma mesa não saíram muito bem; mas
sua viúva vendeu-as com facilidade pelo preço de um apartamento em Paris para a
revista local Pitch especializada em futebol e fait divers
diabólicos", escreve Vladimir Nabokov em O Original de Laura, o
manuscrito incompleto do escritor russo revelado ao mundo com estardalhaço no
mês passado.
A história de Adam, apesar de secundária, pode servir para
ilustrar os vários aspectos que a obra envolve: a qualidade do texto em si e a
questão, central, de publicar um manuscrito que o autor, pouco antes de morrer,
havia pedido expressamente à sua mulher, Vera, que destruísse. Entre um e outro,
espraiam-se uma infinidade de personagens e circunstâncias sem as quais não se
pode compreender a verdadeira dimensão da obra que acaba de vir à luz depois de
32 anos trancada em um cofre na Suíça. Uma história que, de maneira muito
nabokoviana, não dispensa interesses pouco nobres. Afinal, era ele mesmo quem
dizia que a vida é "um intricado jogo de encantamento e decepção". Nesse
sentido, O Original de Laura pode ser considerado a obra-prima de uma
vida - ainda que de maneira involuntária. Escrito a lápis em 138 fichas catalográficas em 1977, quando
Nabokov se tratava de uma infecção em uma clínica em Lausanne, na Suíça, O
Original de Laura é, na verdade, pouco mais que um esboço. ("Está em algum
lugar entre a larva e a pupa", na expressão do escritor britânico Martin Amis,
usando uma metáfora lepidóptera e remetendo ao famoso hobby do escritor de
colecionar borboletas). Mais trabalhados, os cinco primeiros capítulos (fichas 1
a 63) detêm-se em Flora, uma adúltera que acaba sendo personagem de um roman
à clef chamado Minha Laura, escrito por um de seus amantes. Em
seguida (fichas 64 a 87), vêm dois capítulos provisórios. Depois, anotações cada
vez mais fragmentadas algumas rascunhos das primeiras fichas: Intervalo
Médico (88 a 92) e Último Capítulo (93 a 138). Nesse ponto, Nabokov
muda o foco para o marido gordo de Flora, o neurologista Philip Wild, que se
entrega a um processo de autodissolução a caminho da morte. Embora cheio de "patas de leão de uma mesa", o manuscrito
evidencia o assombroso talento do autor. No total, essa miríade de situações
entrecruzadas não preencheria sequer 30 páginas de um livro. As do início, mais
redondas, muito menos que isso. Uma história lateral como a de Adam, por
exemplo, limita-se a cinco fichas, no capítulo 2. Difícil, em vista de tamanha
concisão, discordar da opinião do filho do escritor, Dmitri Nabokov. Antes de
contrariar o desejo do pai, decidindo pela publicação, ele já afirmava que
Laura possuía a "destilação mais concentrada da criatividade" de
Nabokov. Mas as coisas, não custa frisar, não são tão simples. Além do
texto, há a vida - e a morte. E com elas vêm as lendas, como capítulos
postumamente acrescentados a uma obra que, muito a propósito, não depende mais
da vontade de seu autor. "MORRER É DIVERTIDO" A morte, que Nabokov enfrentava quando redigiu suas notas (e
que parece fazer eco à autoanulação de Philip Wild), estava presente na ideia do
livro desde o início. No dia 1º de dezembro de 1974, ele anotou em seu diário a
expressão "Morrer é divertido" - que veio a ser o subtítulo
da atual edição. Em 3 de abril de 1976, o título mudou para The Opposite of
Laura (O Oposto de Laura), passando a ser designado por sua
abreviação, TOOL. O maior biógrafo do escritor, Brian Boyd, especulou que se
tratava de mais um jogo do autor, que queria se referir ao lápis, ferramenta
(tool, em inglês) que usara durante toda a vida para escrever seus
romances. Para um perfeccionista como Nabokov, a borracha na ponta oposta era
tão valiosa que ele sempre rejeitara a máquina de escrever, preferindo as fichas
catalográficas, usadas também para escrever, por exemplo, Lolita (1955) e
Fogo Pálido (1962). Depois de sua internação, em 17 de junho, a obra começava a
nascer. Em 5 de dezembro, ao responder a uma enquete sobre os melhores livros do
ano para o New York Times Book Review, o escritor listou uma obra sobre
borboletas, O Inferno de Dante e um certo O Original de
Laura. Magistralmente, ele esclarece: "É um romance concluído em minha
mente, que devo ter repassado umas 50 vezes, e que continuei lendo em voz alta
para um público pequeno no sonho de um jardim murado. Minha audiência consistia
de pavões, pombos, meus pais há muito mortos, dois ciprestes, várias jovens
enfermeiras agachados ao meu redor e um médico de família tão velho que chegava
a ser invisível. Talvez por causa dos meus tropeços e acessos de tosse a
história de minha pobre Laura teve menos sucesso entre os meus ouvintes do que
terá, assim espero, com os resenhistas inteligentes, quando devidamente
publicada". Na mesma ocasião, revela estar seriamente doente. Morreria seis
meses depois, no dia 2 de julho de 1977, de bronquite. A imprensa e o mundo
literário eriçaram-se. Instruída a destruir as fichas, Vera hesitou. Era a coisa
certa a fazer? Talvez tenha contado o fato de que anos antes, em 1950, ela
impediu o marido de destruir o manuscrito de Lolita - ele
estavaconvencido de que a obra nunca seria compreendida e aceita. Obviamente,
são casos muito diferentes: este era a obra-prima acabada, revisada e
trabalhada. Laura era só um rascunho. Mas, por conta das circunstâncias,
havia muito mais coisa em jogo. "QUEIMAR OU NÃO QUEIMAR" Nos anos 1980, o biógrafo Boyd foi uma das poucas pessoas a ter
acesso ao manuscrito. Conhecendo o perfeccionismo do autor, ficou um tanto
chocado com os rabiscos mostrados por Vera. Anos mais tarde ele mudaria de
ideia, mas naquele momento ficou convencido de que a coisa certa a fazer era
atender ao desejo de Nabokov. Nas décadas posteriores, a questão sobre a
publicação do manuscrito - ou não - ganhou contornos de disputa
partidária. "Um escritor sempre merece ser lido, mesmo no seu pior", disse o
autor irlandês John Banville. No canto oposto do ringue, o dramaturgo Tom
Stoppard foi categórico: "É perfeitamente simples. Nabokov o queria queimado,
então queimem". Primo do escritor, o editor Ivan Nabokov era outro a favor da
destruição. Seu argumento era bom: ele temia que se sacrificasse a essência
perfeccionista do escritor para atender "gente da universidade", que queria os
trechos publicados para satisfazer os seus próprios interesses. Mas outra
opinião muito boa foi a do crítico americano Edmund White: "Se um escritor quer
realmente destruir algo, ele mesmo queima". A questão foi atiçada por outros episódios, alguns cômicos. À
maneira borgiana (outro autor, aliás, que adorava os jogos), um certo Michel
Desommelier, suíço, publicava em 1998 no site Zembla, dedicado à obra de
Nabokov, um texto analítico sobre Laura, acompanhado de quatro trechos do
manuscrito. Dizia-se que tinha sido revelado por uma enfermeira que cuidara do
escritor naquela temporada na Suíça. Tudo falso: na verdade, tratava-se de uma
paródia de Nabokov, feita pelo americano Jeff Edmunds, editor do site. Muita
gente caiu direitinho. O próprio Dmitri - o filho de Nabokov que garantia a
excelência do manuscrito - apavorou-se ao ouvir falar da publicação. Dmitri era, então, o personagem secundário alçado à condição de
protagonista. Desde a morte de Vera, em 1991, o destino do manuscrito estava em
suas mãos. Tradutor da obra do pai, cantor profissional de ópera (baixo), era o
protótipo de playboy na juventude, ganhando na imprensa italiana o apelido de
"Lolito". Entre seus hobbies estavam os carros de corrida e o alpinismo, e teria
escapado da morte algumas vezes. Em 1952, saiu ileso de uma queda de 30 metros
quando escalava as montanhas Teton, nos Estados Unidos; no mesmo ano, segundo
contou (numa história difícil de acreditar), teria escapado por pouco quando um
meteoro (!) caiu no monte Orizaba, no México. Em outra ocasião, foi salvo no
último instante de cair em um alçapão aberto no palco, durante uma apresentação
de Don Giovanni, de Mozart, em Porto Rico. Até que, no dia 26 de setembro de 1980, aos 46 anos, ele
arrebentou sua Ferrari 380 GTB de fibra de vidro na estrada entre as cidades
suíças de Lausanne e Montreux. No acidente, teve queimaduras de terceiro grau em
40% do corpo e fraturou o pescoço, o que o levou a se locomover em uma cadeira
de rodas. Segundo afirmou na época, chegou a morrer temporariamente no hospital
dias depois - numa experiência que incluía a indefectível visão de um
atraente túnel de luz. Durante anos, Dmitri deu a impressão de que nunca revelaria o
manuscrito. Mas também não dizia o que faria. Em 2005, o americano Ron
Rosenbaum, crítico da revista virtual Slate, acrescentou um verniz
shakespeariano à história, comparando a situação de Dmitri com a de Hamlet.
"Queimar ou não queimar", eis o dilema de um filho hesitante em cumprir ou não o
desejo do pai. Inquirido se pretendia queimar ou rasgar o manuscrito, Dmitri,
irritado com Rosenbaum, respondeu com uma provocação: "Talvez eu já o tenha
destruído e prefira não revelar o método". O ESPECTRO DE NABOKOV No transcorrer dessa história, Dmitri foi ficando cada vez mais
provocador. Ao mesmo tempo, seu estado de saúde foi piorando - e os custos
médicos, complicados com a idade avançada, aumentando. A essa altura, sinopses
de O Original de Laura começaram a vazar - mas todo mundo, depois do
episódio Desommelier, ficou mais cauteloso em relação ao teor delas. Mas alguma
coisa estava mudando. No início de 2008, Dmitri dizia estar "próximo de uma decisão".
Até que em fevereiro, usando seu histórico de visões sobrenaturais, se apropriou
da imagem hamletiana de Rosenbaum. Em um e-mail enviado à produtora de um
programa de TV australiano que discutia a questão - inclusive com a
presença de Boyd e Rosenbaum -, ele afirmou ter sido visitado pelo fantasma do
pai em Palm Springs. Em sonho, imaginária ou metaforicamente, Nabokov teria
dito: "Você está empacado na mesma confusão de sempre. Vá em frente e publique".
Radicalizando no cinismo, Dmitri acrescentou: "Com um sorriso irônico e amoroso,
ele poderia, diante da minha situação, dizer: 'Bem, por que não unir o útil ao
agradável? Faça o que quiser, mas por que você não faz algum dinheiro com a
maldita coisa?'". As declarações pipocaram na imprensa meses depois, quando a
decisão foi oficializada. Não eram poucos os que desconfiavam que Dmitri havia
inflado a expectativa em relação ao manuscrito para ganhar dinheiro. Muito
dinheiro. Sintomaticamente, um mês depois do anúncio, ele trocou a agente
literária de décadas de Nabokov, Nikki Smith, pelo superagente Andrew Wylie. Com
cerca de 600 escritores de grande nome em seu portfólio, Wylie é conhecido no
meio pelo sugestivo apelido de "Chacal". Muitos dizem que ele "rouba" clientes
de outros agentes, mas ninguém nega sua competência. Ele foi, por exemplo, o
pivô da famosa briga dos ex-amigos Julian Barnes e Martin Amis, quando este
trocou sua antiga agente - Pat Kavanagh, mulher de Barnes - por Wylie,
que lhe conseguiu um adiantamento de 800 mil libras pelo romance A
Informação (1995). Por uma quantia não revelada, a agência de Wylie rapidamente
fechou contrato com as editoras Alfred A. Knopf, nos Estados Unidos, e Penguin,
na Inglaterra. Foi Alfred Knopf quem teve a ideia de publicar O Original de
Laura numa edição com fichas destacáveis (na edição brasileira, lançada pela
Alfaguara, a transcrição é acompanhada, em páginas espelhadas, pelo fac-símile
das famosas fichas). Wylie ainda fechou um acordo com a Playboy
americana, que ganhou o direito de antecipar em uma semana cerca da metade do
livro em suas páginas. O valor desse acordo também não foi revelado, mas a
editora de livros da revista, Amy Grace Loyd, afirmou que a Playboy nunca
havia pago tanto por um trecho de livro. Inquirido sobre seus eventuais interesses monetários, Dmitri
ironiza. "É verdade que minha cadeira de rodas precisa de certas modificações
para caber no porta-malas da minha Maserati". Na (fraca) introdução de O
Original de Laura, aliás, é bastante agressivo, usando expressões como
"indivíduos de imaginação limitada", "idiotas da moda" e "jornalistas
semiletrados", entre outras, para justificar sua decisão. No fim, dispara uma
ironia contra Rosenbaum: "Sou um bom sujeito e, tendo notado que as pessoas do
mundo todo se sentem à vontade para me chamar pelo primeiro nome quando
simpatizam com o 'dilema de Dmitri', senti que devia aliviar seu
sofrimento". Aos 75 anos, Dmitri tem, com certeza, dinheiro para comprar
muito mais que um apartamento em Paris, como aconteceu com a viúva de
Adam - aquele personagem secundário imaginado por seu pai "no sonho de um
jardim murado". Nem Nabokov, magistral como era, podia ter imaginado a grandeza
que a vida, com seus "encantamentos e decepções", podia emprestar a O
Original de Laura. O LIVRO
O Original de Laura,
de Vladimir Nabokov. Tradução de José Rubens Siqueira. Alfaguara, 304 págs., R$
59,90.6 Nov 2009 ... "O Original de Laura", escrito no fim da vida por
Vladimir Nabokov, é pouco mais que um rascunho. Mas a história
do manuscrito - que envolve ...
bravonline.abril.com.br/.../original-laura-vladimir-nabokov-517214.shtml